MSS, 61 anos, sexo masculino, branco, previamente assintomático, apresenta histórico de tabagismo e hipertensão essencial, atualmente em uso de losartana 100mg/dia. Iniciou há cerca de quatro horas quadro de epigastralgia constritiva de moderada intensidade acompanhada de náuseas e diaforese. Devido à persistência dos sintomas apesar de automedicação com antiácidos procurou atendimento de urgência em um hospital próximo, onde se apresentou sintomático e hipertenso.
FC 95bpm; FR 22irpm; SaO2 97% em ar ambiente; PA 180/110mmHg; sem febre.
Ao exame demonstrava relativo bom estado geral, com perfusão capilar preservada e jugulares atúrgidas. Evidenciou se a presença de B4 e não havia alterações à ausculta pulmonar.
ECG da admissão:
O paciente foi incluído no protocolo de dor torácica. Foram administrados AAS 200mg, pantoprazol 40mg e nitroglicerina em infusão contínua. A primeira dosagem de troponina foi de 27ng/L e a radiografia de tórax demonstrou a presença de mediastino centrado, área cardíaca normal e sem sinais de congestão pulmonar.
Apesar da evolução clínica favorável com adequado controle da dor, a segunda dosagem de troponina apresentou um salto para 2.000ng/L.
A alteração dinâmica na parede anterior com expressiva elevação de marcadores de lesão miocárdica, indicou a realização de coronariográfica de urgência.
Os achados estão descritos abaixo:
Artéria coronária direita dominante, ocluída em terço proximal e opacificando-se por heterocolaterais • Tronco da coronária esquerda curto sem lesões
Artéria descendente anterior com lesão ostial de 80% seguida de lesão de 70% em terço médio • Ramo diagonal de grande expressão anatômica com lesão de 70% na porção média
Artéria circunflexa ocluída em segmento distal de forma aguda
Ramo marginal esquerdo de grande expressão anatômica com lesão de 50% em porção medial • Função sistólica global preservada com leve hipocinesia anterolateral
A elevação máxima da troponina foi de 9.000ng/L e o ecocardiograma demonstrou função sistólica global do ventrículo esquerdo limítrofe com FEVE 50% pela técnica de Simpson associada à hipocinesia septoinferior (segmento médio), septoapical e septal (segmentos basal e médio). O paciente foi submetido à cirurgia de revascularização miocárdica completa em caráter de urgência, sem maiores intercorrências, e recebeu alta hospitalar em poucos dias de pós-operatório com dupla antiagregação plaquetária.
Comentários:
Embora a indicação de coronariografia de urgência tenha sido realizada com base na alteração dinâmica de V1 a V3 sugestiva de lesão crítica proximal da artéria descendente anterior, somada à curva francamente positiva de troponina, a análise criteriosa retrospectiva dos traçados eletrocardiográficos nos revela outra hipótese diagnóstica.
Determinadas lesões coronarianas apresentam pouca expressão eletrocardiográfica, mesmo quando resultam em oclusão aguda, podendo provocar angina refratária, elevações expressivas de troponina, disfunção ventricular, arritmia e choque. Estimativas a partir de ensaios clínicos indicam que anualmente mais de 200.000 pacientes nos Estados Unidos podem ter uma oclusão coronariana aguda não detectada ao eletrocardiograma de 12 derivações. Esse é o caso da oclusão da artéria circunflexa, de enxertos venosos ou do tronco da coronária esquerda.
Não é infrequente, todavia, que eventos relacionados à parede inferior passem despercebidos pelo olhar cansado ou desatento, mais preocupado com alterações isquêmicas na parede anterior. De forma retrospectiva, pode-se perceber no presente caso clínico a redução evolutiva de amplitude da onda R em DIII e aVF associada a um discreto aumento da amplitude e duração da onda Q nessas derivações, o que representa do ponto de vista elétrico necrose subepicárdica na parede inferior. Não há alterações dignas de nota em DII. Enéas descreve: “infartos inferiores normalmente se expressam de modo mais decisivo em DIII e aVF do que em DII, a não ser quando toda a parede inferior foi alcançada, até suas porções mais esquerdas.” Tal observação é compatível com o achado angiográfico de oclusão aguda distal da artéria circunflexa, com menor território miocárdico.
Além disso, a presença de ondas T acentuadas e simétricas de V1 a V3 no primeiro eletrocardiograma poderiam representar de forma recíproca a presença de isquemia subepicárdica posterior. Em outras palavras, elas espelham ondas T negativas, profundas e simétricas em derivações posteriores. Outro ponto suspeito é a presença de ondas R proeminentes desde V1, o que poderia representar também de forma recíproca ondas Q posteriores. As alterações que se sucedem parecem corresponder ao infarto inferodorsal não reperfundido em curso na presença de doença multiarterial com lesões proximais graves de descendente anterior.
Aprendizados
✓ A obtenção de um eletrocardiograma de 16 derivações de qualidade à admissão do paciente na sala de urgência pode ser decisiva no diagnóstico de infarto com supradesnível do segmento ST;
✓ O reconhecimento do infarto inferodorsal deve alertar a equipe médica quanto à possibilidade de infarto do ventrículo direito e ao risco de hipotensão e choque relacionados à administração de nitrato parenteral ✓ A realização de eletrocardiogramas seriados após um primeiro exame “inocente”, mesmo que a dor torácica esteja controlada, contribui para o melhor manejo desses pacientes e consequentemente melhores resultados clínicos;
✓ Diante de um eletrocardiograma inicial não-diagnóstico, o ecocardiograma transtorácico beira-leito é uma ferramenta importante para o diagnóstico de infarto relacionado à artéria circunflexa e indicação de coronariografia de urgência, particularmente na presença de hipocinesia ou acinesia nova da parede lateral ou posterior, haja visto que elas podem preceder as alterações eletrocardiográficas;
✓ A realização de coronariografia precoce (em até seis horas) para pacientes estáveis com alto risco isquêmico permite o diagnóstico definitivo com identificação da artéria culpada de forma inequívoca, ao passo que reduz o risco hemorrágico relacionado à dupla antiagregação plaquetária quando há indicação cirúrgica ou na ausência de doença coronariana.
Referências
Rosales-Castillo A, Plaza-Carrera J. Síndrome de Wellens. Rev Clin Esp. 2017;217(8):491. 2. Krishnaswamy A, Lincoff AM, Menon V. Magnitude and consequences of missing the acute infarct-related circumflex artery. Vol. 158, American Heart Journal. Mosby; 2009. p. 706–12.
Ibanez B, James S, Agewall S, Antunes MJ, Bucciarelli-Ducci C, Bueno H, et al. 2017 ESC Guidelines for the management of acute myocardial infarction in patients presenting with ST-segment elevation [Internet]. Vol. 39, European Heart Journal. 2018 [cited 2021 Feb 7]. p. 119–77. Available from: https://academic.oup.com/eurheartj/article/39/2/119/4095042
Carneiro EF. Enéas: o eletrocardiograma 10 anos depois. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editorar Enéas Ferreira Carneiro, 1987.
Autor:
Thiago Sant’Anna Coutinho
Médico Rotina Unidade Cardiointensiva e Cardiologia – Caxias D’Or
Mestrando em Ciências Cardiovasculares – Instituto Nacional da Cardiologia
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