Introdução
Os inibidores da SGLT2 são uma classe de antidiabéticos que agem reduzindo a glicemia por aumentarem a excreção de glicose pela urina. Atualmente, dapaglifozina, canaglifozina, empaglifozina e mais recentemente ertuglifozina (ainda não disponível no Brasil) são as drogas aprovadas pelo FDA para uso em pacientes com diabetes melito tipo 2 (DM2). Além do benefício no controle glicêmico, essa classe se mostrou como protetora de eventos cardiovasculares e renais em pacientes portadores de DM2. Mais recentemente, dapaglifozina e empaglifozina também demonstraram redução de desfecho cardiovasculares em pacientes com insuficiência cardíaca e fração de ejeção reduzida (ICFER), independente da presença de diabetes!!! Apesar de todos benefícios conhecidos, os inibidores da SGLT2 ainda são uma classe de drogas pouco utilizadas, muito provavelmente pelo custo, falta de familiaridade com a droga e preocupação quanto a efeitos colaterais.
Falaremos aqui um pouco sobre os mecanismos fisiológicos, evidências encontradas nos últimos estudos, indicações clínicas e considerações práticas para uso dessa classe de medicamentos.
Mecanismos fisiopatológicos
Redução da glicemia: os iSGLT2 tem modesto efeito na redução de glicemia (aproximadamente 0,5 a 1% de redução em hemoglobina glicosilada), através da redução de reabsorção de cerca 50% de glicose nos túbulos contorcidos proximais.
Perda de peso: a classe promove uma perda de peso em torno de 2 a 3 kg, o que pode ser explicado na fase inicial pelo efeito natriurético, mas a longo prazo também pelo balanço calórico negativo promovido pela glicosúria, levando inclusive a redução da gordura visceral e subcutânea o que tem sido mostrado em alguns estudos. 11 sw.
Redução em níveis tensionais e depleção na volemia: os iSGLT2 têm sido associados com efeitos vasculares benéficos baseados em vasodilatação arterial e melhora na função endotelial, o que combinadas a natriurese e a diurese osmótica podem explicar a redução de níveis tensionais encontradas nos estudos. A redução da volemia em torno de 7% tem interesse particular em pacientes portadores de ICFER que se beneficiam com pré carga e pressão de enchimento mais baixos.
Efeitos metabólicos: uma das hipóteses para explicar o efeito benéfico dos iSGLT2na ICFER é que o aumento na produção de corpos cetônicos melhore o funcionamento dos cardiomiócitos, ação que ainda merece ser detalhada em estudos futuros. Além disso, há evidências que sugerem uma redução da resistência periférica à insulina com preservação da secreção de insulina graças ao mecanismo independente de glicosúria.
Evidências clínicas de benefícios cardiovasculares e renais
Evidências de benefícios cardiovasculares e renais derivam de grandes estudos randomizados e multicêntricos. Até o momento, 4 grandes estudos quanto aos desfechos cardiovasculares (EMPA-REG OUTCOME, CANVAS, DECLARE-TIMI 58, VERTIS CV), 2 estudos com desfechos renais primários (CREDENCE e DAPA-CKD) e 2 estudos específicos para pacientes com ICFER (DAPA HF e EMPEROR) nos levam às atuais evidências.
O primeiro estudo duplo cego, randomizado e placebo controlado de pesquisa de desfechos cardiovasculares em iSGLT2 foi o EMPA-REG OUTCOME (Empagliflozin, Cardiovascular Outcomes, and Mortality in Type 2 Diabetes), que estudou o efeito da empaglifozina em 7020 pacientes com DM2 doença cardiovascular estabelecida. Esse foi o primeiro estudo que mostrou redução em 14% em MACE, que é composto IAM, AVC e morte cardiovascular. Além de redução de 38% em morte cardiovascular, 32% de morte por todas as causas e 32% de redução de hospitalizações em IC.
Esses resultados foram seguidos pelo CANVAS (canaglifozin Cardiovascular Assessment Study) que similar ao EMPA-REG OUTCOME mostrou redução de 14% em MACE e 33% de redução em hospitalizações em IC. Chamou atenção nesse estudo um maior número de amputações, o que deixou a comunidade médica em alerta, mas achado esse que não se reproduziu em outros estudos com a droga.
O terceiro e maior estudo até agora foi o DECLARE-TIMI 58 (Dapaglifozin Effect on Cardiovascular Events-Thrombolysis In Myocardial Infarction 58), no qual a dapaglifozina reduziu significantemente o risco de morte cardiovascular e hospitalização por IC. Uma análise de subgrupo em pacientes com infarto prévio mostrou uma redução significante de 16%no risco relativo de MACE, incluindo uma redução de 22% em infarto recorrente.
A última droga estudada quanto aos desfechos cardiovasculares foi a ertuglifozina no estudo VERTIS CV (Evaluation of Ertugliflozin Efficacy anda Safety Cardiovascular Otcomes Trial). Que mostrou um efeito consistente quanto a redução em hospitalizações por IC, porém não observou redução em eventos adversos maiores observada com as outras drogas. Fica pouco claro se isso ocorreu pela diferença na população estudada ou em uma diferença na característica da droga.
Subanálises dos primeiros estudos sugeriram que os iSGLT2 poderiam ser benéficos em pacientes com ICFER independentemente de serem portadores de DM2. Esse benefício foi confirmado pelo DAPA HF e mais recentemente pelo EMPEROR Reduced, que contaram participantes não portadores de DM, e surpreendentemente foram encontrados os mesmos resultados positivos entre os dois grupos: redução relativa em torno de 25% na incidência de morte de origem cardiovascular ou hospitalização e piora da insuficiência cardíaca!! Esses estudos marcaram a introdução de uma nova terapia aos guidelines de Insuficiência Cardíaca.
Inspirado em efeitos positivos encontrados nos desfechos secundários dos estudos citados acima, foi lançado o estudo CREDENCE com desfecho primário renal (doença renal terminal, aumento em 2x da creatinina sérica e morte por causa renal ou cardiovascular). O resultado foi uma redução de 30% nos desfechos primários. Na sequência no último ano tivemos o DAPA-CKD, ratificando os benefícios renais dos iSGLT2.
Segurança
Uma metanálise de seis estudos mostrou aumento de infecções genitais, porém sem haver maior número de infecções do trato urinário incluindo pielonefrite. A preocupação inicial com Fournier não se confirmou com os estudos mais numerosos e recentes.
Embora infrequente, a cetoacidose euglicemica deve ser sempre uma preocupação, nem sempre o diagnóstico precoce é fácil. Quando houver a suspeita é importante a dosagem sanguínea de corpos cetônicos ao invés de se basear em níveis de glicemia para fechar o diagnóstico e conduzir o caso. Uma avaliação da presença de acidose também é parte fundamental da investigação.
O risco aumentado de amputações encontrado no estudo CANVAS não se repetiu em outros estudos, inclusive com a mesma droga como por exemplo no CREDENCE.
Quando e como prescrever?
Os guidelines mais recentes publicados pela Associação Americana de Diabetes e endossados pela ACC refletem as evidências encontradas nesses últimos estudos, com uma ênfase especial no benefício cardiovascular, em mortalidade em IC e proteção renal. Em pacientes com diagnóstico recente de DM2 e doença cardiovascular estabelecida, ou com alto risco cardiovascular, os guidelines recomendam uso de iSGLT2 como segunda linha no tratamento do DM2, permanecendo ainda a metformina como primeira escolha. Pacientes com DM e IC ou doença renal crônica, os iSGLT2 são recomendados especificamente como segunda linha para redução em hospitalizações e piora de função renal.
Já pelos guidelines europeus, há recomendação do uso de iSGLT2 como primeira linha (antes da metformina) em pacientes com DM e portadores de IC, doença cardiovascular ou em alto risco para doença cardiovascular. No último ano houve aprovação pelo FDA do uso da dapaglifozina para todos pacientes com IC com CF II a IV, independente da presença ou não de DM. Uma atualização no consenso de tratamento de IC da ACC orienta quanto ao uso da dapaglifozina ou empaglifozina para pacientes com ICFER e Classe funcional II-IV NYHA, tornando essas drogas como parte do chamado Gold Standart Treatment para ICFER.
Apesar de tantos pontos positivos acerca dessa classe de medicamentos ainda permanecem algumas incertezas, a serem respondidas em futuros estudos:
No campo mecanismo de ação, será que já entendemos tudo sobre essa classe de droga?
Qual benefício da classe de droga em pacientes portadores de ICFEP?
Até quando a metformina permanecerá como primeira escolha para o tratamento do DM2?
Será que encontraremos benefícios em pacientes portadores de DRC estágios 4 e 5?
Os desfechos positivos são efeitos de classe ou teremos um grupo de drogas para IC, um para proteção cardiovascular e outro para proteção renal?
Autora
Mariana Tortelly
Supervisora da UCI/UPO
Líder da Linha de Cuidados em Cardiologia
Hospital Niterói D’or
Bibliografia
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