A Estenose Aórtica apresenta prevalência crescente em razão do aumento da expectativa de vida e do consequente envelhecimento da população brasileira. Em 2020, a Sociedade Brasileira de Cardiologia publicou a Atualização das Diretrizes Brasileiras de Valvopatias, ampliando as indicações do Implante de Bioprótese Valvar Aórtica Transcateter (TAVI). A TAVI via transfemoral passou a ser a primeira opção de tratamento da Estenose Aórtica importante sintomática em pacientes acima de 70 anos, independente do risco cirúrgico. Após os estudos iniciais, as diretrizes sempre foram categóricas na indicação preferencial da TAVI em detrimento da cirurgia para pacientes inoperáveis, frágeis e/ou de alto risco cirúrgico. Entretanto, 4 estudos comparando TAVI com cirurgia de troca valvar aórtica em pacientes de baixo risco cirúrgico foram publicados recentemente. A metanálise destes estudos demonstrou redução de mortalidade em 1 ano a favor da TAVI, quando realizada pela via transfemoral. Estes dados, associados com a recente confirmação de que a TAVI será incluída na próxima atualização do rol da Agência Nacional de Saúde (ANS), sugerem um grande aumento no número de indicações do procedimento nos próximos meses. Está bem estabelecido que a indicação deve ser realizada pelo Heart Team, após avaliações clínicas bem estabelecidas. Entretanto, existe um longo caminho que se inicia com a decisão do Heart Team até o início do procedimento, no laboratório de Hemodinâmica. O planejamento é a chave do sucesso para transformar os resultados dos estudos randomizados em benefício para o nosso paciente.
Após a indicação da TAVI, o exame chave para o planejamento do procedimento é a Angiotomografia. Este exame deve contemplar a via de saída do Ventrículo Esquerdo, a Valva Aórtica e a Aorta, desde a raiz até as artérias femorais, abaixo da bifurcação. A Angiotomografia de Coronárias também pode ser realizada no mesmo momento e, em alguns casos, descartar a necessidade de cineangiocoronariografia pré-procedimento.
Avaliação da via de acesso
A primeira avaliação a ser realizada é a via de acesso. Sabemos que a via transfemoral é a primeira escolha, uma vez que a redução de mortalidade está diretamente relacionada a esta via. A angiotomografia tem capacidade de medir com grande acurácia o diâmetro dos vasos a serem utilizados e é o padrão ouro para esta avaliação. As biopróteses mais utilizadas na atualidade apresentam diferentes dispositivos que requerem diferentes calibres de segmentos arteriais para adequada navegação. Os diâmetros mínimos necessários variam entre 5 a 6 mm dependendo do dispositivo e da técnica utilizada. Diâmetros nos limites inferiores das recomendações dos fabricantes devem ser minuciosamente avaliados quanto ao trajeto, presença de tortuosidades e grau de calcificação.
O vídeo 1 e a figura 1 são imagens do mesmo paciente que mostram a reprodutibilidade da angiotomografia quando comparada à arteriografia dos membros inferiores. A angiotomografia tem a vantagem de oferecer a visualização tridimensional dos vasos analisados e a possibilidade de realizar cortes transversais (figuras 2 e 3) para identificar de forma precisa os diâmetros mínimos ao longo de todo o trajeto. Além dos diâmetros, outros dados de grande importância facilmente identificados por este método são a presença de tortuosidades, eventuais úlceras, dissecções e a presença, disposição, quantidade e densidade das calcificações (figuras 5 e 6).
Vídeo 1: Arteriografia de vasos ilíacos e femorais
Figura 1: Angiotomografia de vasos ilíacos e femorais (3D) da mesma paciente apresentada no Vídeo 1:
Figura 2: Angiotomografia de vasos ilíacos e femorais – Medidas dos diâmetros de todos os segmentos desde a Aorta distal até as artérias femorais. A reconstrução 3D também mostra tortuosidades e a quantidade, disposição e densidade das calcificações:
Figura 3: Angiotomografia de vasos ilíacos e femorais – Estudo do trajeto e medidas dos diâmetros mínimos em cada segmento:
Figuras 4 e 5: (4) Reconstrução 3D de todo o trajeto, desde a via de saída até os vasos femorais;
(5) Disposição das calcificações no anel aórtico, artérias coronárias, arco Aórtico e Aorta Descendente.
A decisão pela via de acesso deve ser cautelosamente programada. Vasos muito tortuosos e densamente calcificados, com complacência diminuída, podem não acomodar os dispositivos adequadamente apesar de diâmetros satisfatórios. Neste cenário, se o hemodinamicista não estiver preparado para realizar uma via alternativa (subclávia, carotídea, transcaval), o procedimento pode ser abortado após grande agressão vascular, sem oferecer qualquer benefício. A insistência em progredir dispositivos que não são adequadamente acomodados pela via escolhida pode causar complicações graves como dissecções, oclusões arteriais e perfurações ameaçadoras a vida.
Avaliação do anel valvar
A Angiotomografia, primariamente introduzida na avaliação pré-TAVI para avaliação dos acessos periféricos, se tornou a principal ferramenta para a escolha do tamanho da bioprótese e para determinação do risco de injúria ao anel valvar. O cardiologista intervencionista deve ser devidamente treinado e habilitado para realizar estas medidas, trabalhando em conjunto com o cardiologista especialista em imagem cardiovascular. Pequenos erros de interpretação, posicionamento e angulação podem causar grandes alterações nas medidas do anel e da Aorta, comprometendo todo o planejamento. Idealmente, a aquisição das imagens deve ser sincronizada com o eletrocardiograma e um cuidado deve ser tomado na reconstrução das imagens para identificar a fase com os diâmetros máximos, durante a sístole. Isso ocorre geralmente em torno de 40% do tempo do ciclo cardíaco (sístole máxima). Caso realizadas na diástole, as medidas podem ficar subestimadas, possivelmente levando a escolha de um dispositivo menor do que o recomendado.
Para realizar o dimensionamento do anel aórtico, delimitamos um plano virtual alinhado pelos pontos mais basais das inserções de cada uma das três cúspides (figuras 6). A prótese balão-expansível mais utilizada recomenda o uso da área do anel valvar em mm2 para a escolha do tamanho do dispositivo conforme consta na tabela 1. Esta tabela, fornecida pelo fabricante, além de apontar qual a prótese adequada para determinada área, também estima o quanto aquela bioprótese estará subestimada ou superestimada ao tamanho do anel, quando liberada com o volume nominal do balão. É através desta informação que decidimos a quantidade de volume (se maior, menor ou igual ao volume nominal) que deverá ser colocado no balão para que a prótese se acomode de forma mais precisa e atinja sua expansão ideal. No caso exemplificado na figura 12, a área do anel valvar é de 501,2 mm2, sendo recomendada uma prótese de Edwardsâ Sapien 3 no 26 mm conforme verificamos na tabela 1.
Figura 6. Medida do anel aórtico – Plano virtual derivado dos pontos mais basais das inserções de cada uma das três cúspides
(Perímetro, área, diâmetro mínimo e diâmetro máximo)
Tabela 1:
A prótese auto-expansível recomenda o uso do perímetro do anel valvar em mm para a escolha do tamanho do dispositivo conforme consta na tabela 2. Dados como os diâmetros do anel e diâmetro médio dos seios de Valsalva também são importantes, principalmente nos casos em que o perímetro está na transição entre os tamanhos de prótese recomendados. No caso exemplificado na figura 12, o perímetro do anel é de 80,9 mm2, sendo recomendada uma prótese Evolut R no 29 mm.
Tabela 2:
A avaliação da calcificação na região em que será implantada a bioprótese também é de fundamental importância para o sucesso do procedimento. A classificação em leve, moderada e importante é realizada de forma subjetiva, considerando sua extensão circunferencial, profundidade na via de saída, espessura e grau de protrusão para a luz do anel valvar (figura 7).
Figura 7: Calcificação importante do anel aórtico invadindo a via de saída do Ventrículo Esquerdo:
Calcificações importantes, principalmente as que invadem profundamente a via de saída do Ventrículo Esquerdo, estão relacionadas a risco aumentado de leak paravalvar. Nódulos espessos nessa região também podem aumentar o risco de ruptura do anel valvar, especialmente quando utilizadas biopróteses balão-expansíveis. A região sub-anular está em íntimo contato com o sistema de condução. Calcificações nessa região devem chamar a atenção para possibilidade de bloqueios atrioventriculares, especialmente em pacientes que possuem bloqueio de ramo direito prévio.
Avaliação da altura das Coronárias
Após a avaliação do anel valvar e da Aorta, o próximo passo é avaliar a altura das artérias Coronárias. A obstrução dos óstios das coronárias de valva nativa é um fenômeno relativamente raro, ocorrendo em <1% dos casos. A oclusão do Tronco da Coronária Esquerda é mais comum enquanto o acometimento da Coronária Direita é mais raro. Essa complicação pode causar colapso hemodinâmico agudo e está associada a alta mortalidade. O mecanismo mais comum é o deslocamento do folheto calcificado da valva nativa sobre o óstio da coronária. A altura das coronárias é facilmente obtida pela tomografia, ao se delinear o anel aórtico e traçar uma linha perpendicular entre o nadir do seio de Valsalva correspondente e o óstio da coronária (figuras 8 e 9). Classicamente, altura de coronária < a 10 mm é o mais forte preditor para oclusão coronária. Outro fator de risco importante é o diâmetro médio dos seios de Valsalva < 28mm. Seios de Valsalva maiores conseguem acomodar as cúspides da valva nativa ou da prótese cirúrgica previamente implantada com maior facilidade, reduzindo a chance de limitar o fluxo coronário. Esta medida é realizada traçando uma linha entre a cúspide correspondente e a comissura contralateral. Quando os diâmetros são semelhantes, usamos a média dos 3 diâmetros. Quando existe grande assimetria entre os seios, esta análise deve ser individualizada.
Figura 8: Medida da altura da Coronária Esquerda:
Figura 9: Medida da altura da Coronária Direita:
Figura 10: Medida dos diâmetros dos seios de Valsalva:
Quando tratamos disfunção de prótese cirúrgica previamente implantada, procedimento conhecido como Valve-in-Valve, o risco de oclusão coronária chega a ser 6 vezes maior. Isso ocorre porque as próteses cirúrgicas geralmente são suturadas em posição supra anular, reduzindo a distância para as coronárias. Além disso, biopróteses stentless e as biopróteses stented com folhetos externos são mais propícias à oclusão coronária. Conhecer a bioprótese previamente implantada é imprescindível para o planejamento. Pacientes com bons diâmetros dos seios de Valsalva e com a distância virtual entre o folheto da nova bioprótese e o óstio da coronária correspondente têm menor risco desta complicação. Esta medida é obtida através do delineamento do anel da prótese cirúrgica e a identificação do seu centro geométrico (figura 1). Um cilindro com diâmetro igual ao da bioprótese escolhida é traçado através da angiotomografia (figura 10) até a altura das coronárias. A distância entre este cilindro virtual e o óstio da Coronária é conhecido como VTC (Virtual Trancatheter Bioprothesis to Coronary distance) (figura 11). Valores abaixo de 4mm são forte preditor de oclusão coronária.
Figura 11: Anel da Bioprótese cirúrgica:
Figura 12: Projeção do cilindro virtual com diâmetro equivalente ao da Bioprótese escolhida até a altura do óstio da Coronária Esquerda.
A distância desta projeção até o óstio da Coronária é conhecida como VTC:
Figura 13: Projeção do cilindro com diâmetro equivalente ao da Bioprótese escolhida até a altura do óstio da Coronária Direita.
A distância desta projeção até o óstio da Coronária é conhecida como VTC:
Avaliação da projeção
Tradicionalmente, o implante é realizado em uma projeção fluoroscópica coplanar (figura 14) e a tomografia é capaz de identificá-la de forma precisa, otimizando o planejamento pré-procedimento. Dessa forma, reduzimos a necessidade de aortografias sequenciais para encontrar o melhor ângulo para o implante, reduzindo o tempo de exposição à radiação, uso de contraste e tempo de procedimento. Pequenos erros na angulação podem trazer grandes erros no posicionamento do dispositivo, levando a implantes mais altos ou mais baixos do que o desejado. Implantes muito altos podem levar a embolização da prótese. Implante baixo é o maior preditor para ocorrência de bloqueio atrioventricular total. Variações da técnica tradicional tem sido desenvolvidas objetivando implantes mais altos de forma segura, visando a redução das taxas de bloqueio atrioventricular (Figura 15).
Figura 14: Projeção Coplanar tradicional:
Figura 15:
Conclusão:
A avaliação através da angiotomografia é passo fundamental, não só para o planejamento, mas para fundamentar a indicação do procedimento. A análise da via de acesso, do anel valvar e da altura das coronárias são indispensáveis para descartar possíveis contraindicações, para a escolha ideal do dispositivo para cada anatomia e para minimizar complicações.
Referências:
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* Vídeo 1 e figuras 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 14 e 15 – acervo pessoal do autor
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